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O que relaciona um meteorito, a gasolina sem chumbo, a independência da ciência e a importância do seu financiamento público?

 

Compreendi como tudo se relaciona num sublime episódio da série Cosmos. Nunca, como em nenhum outro momento da minha vida, tive consciência da importância da generalização do conhecimento científico. Na verdade, fiquei convencida que toda a série Cosmos deveria fazer parte do currículo escolar.

 

Voltemos à questão inicial. Tudo começa com outra pergunta: qual é a idade da Terra? Para responder à questão, seria necessário medir a quantidade de chumbo em meteoritos que se julgam ter a mesma idade. A tarefa de fazer as medições coube a Clair Patterson. Porém, este passou anos a fazer medições, e cada vez que media, os dados eram diferentes. Logo percebeu que o problema poderia estar na contaminação do laboratório: tudo que o rodeava tinha chumbo. Nessa altura, o chumbo, apesar de se saber tóxico, era amplamente usado pela indústria por ser maleável e barato. O chumbo estava em todo o lado: no brinquedo de uma criança, em pigmentos de tintas, no cabo de um telefone, numa caixa de alimentação. 

 

Clair Patterson só conseguiu dados consistentes quando criou o primeiro laboratório esterilizado. Foi nessa altura que pode concluir que a terra tem 4.5 biliões de anos.

 

Clair Patterson também fez testes para perceber se a presença do chumbo, no meio ambiente, era natural ou de criação humana. Para isso, testou a quantidade de chumbo em amostras diversas gelo da superfície vs. gelo a vários metros da superfície, água da superfície do mar vs. água da profundidade do mar. Sempre que testava, constatava que o chumbo em locais não atingidos pela poluição, tinham chumbo apenas residual. E que poluição era essa? A utilização de chumbo na gasolina e o consequente fumo que saia dos tubos de escape. 

 

Quando Clair Patterson iniciou uma campanha para vetar a utilização do chumbo, deparou-se com uma verdadeira barreira: o financiamento para continuar a sua investigação foi sendo retirado, foi excluído de cargos e alvo de forte oposição por parte de um lobby centrado na corporação que visava proteger o seu negócio - a distribuição de combustíveis com chumbo.

 

Neste processo, vê-se a ciência a ser instrumentalizada. Quando começaram a morrer trabalhadores das fábricas de processamento de combustíveis com chumbo, numa tentativa de limpar a sua imagem, a Ethyl Corporation contratou Robert A. Kehoe, um cientista que defendeu que o problema estava no mau manuseamento pelos trabalhadores e que o chumbo era algo de natural e presente em toda a Terra. Era um cientista a soldo. 

 

Hoje a utilização do chumbo é muito mais regulada. Hoje utilizamos gasolina sem chumbo. Todavia, o problema do financiamento da investigação científica é muito actual. Por exemplo, em 2015, o British Medical Journal publicou um artigo em que concluía que cientistas da saúde pública e uma comissão governamental que trabalha no aconselhamento nutricional recebiam financiamento das mesmas empresas, cujos produtos são amplamente considerados responsáveis pela crise de obesidade. Os beneficiários de financiamento da investigação de açúcar e outras indústrias relacionadas incluiam membros do Comité Científico Consultivo em Nutrição, que estava a  actualizar o parecer oficial sobre o consumo de hidratos de carbono e pesquisadores que trabalhavam para a unidade de Pesquisa de Nutrição Humana do Conselho de Pesquisa Médica.

 

A influência da fonte do financiamento tem sido amplamente provada em inúmeros estudos. Mesmo que de forma não intencional, a tendência humana é para a reciprocidade de favores. 

Por exemplo, em estudos sobre os efeitos da utilização do telemóvel para a nossa saúde, nomeadamente a absorção de radiação pelo cérebro, os estudos serão tendencialmente mais favorável para a indústria se forem por ela financiados. Mas inúmeros outros exemplos poderiam ser indicados, desde a área farmacêutica à ambiental. 

 

Este episódio de Cosmos evidencia o quanto é importante, no nosso dia-a-dia, até para a nossa saúde, que nos mantenhamos informados e que essa informação seja independente de interesses, nomeadamente económicos.

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Hoje, o que me prendeu não foi um livro, mas um podcast - The Life Scientific - que me fez pensar novamente no Under a White Sky: The Nature of the Future - Elizabeth Kolber que, na verdade, não tem saído da minha mente, por causa do recente relatório do IPCC.

 

Tamsin Edwards, uma cientista climática, especializada em quantificar incertezas em modelos de previsões climáticas, abordou (de forma extremamente interessante) o tópico da incerteza na ciência climática.
 
Nesta que também foi uma conversa sobre transparência e literacia científica, a cientista (quase no final do podcast) concluía que há muitas notícias sobre a ciência do clima que são catastrofistas focadas no click e nos títulos chamativos. 
Deu como exemplo os cabeçalhos sobre a subida do nível da água do mar, que irá acontecer seguramente, mas em que há incertezas sobre a rapidez com que acontecerá.
 
E quando eu pensava: Há esperança!, começam a falar do relatório IPCC (International Panel on Climate Change).
 
A cientista destaca que o IPCC não é apenas um grande artigo de revisão de literatura, mas um verdadeiro relatório de avaliação (assessment report), dizendo que só então teve a consciência dessa palavra - avaliação:
 
"Tu estás em nome da comunidade (...) a avaliar a robustez das evidências científicas disponíveis, em cada frase ou parágrafo desse relatório, e a tentar fazer afirmações sobre se tem alta, média ou baixa confiança de algo que é muito provável de vir acontecer ou só provável de vir a acontecer;
(...)
"E esse processo de pesar as evidências e depois  afirmá-las é assustador (...) Porque é importante para informar os processos de decisão mundiais sobre mudanças climáticas (...)

 

Ou seja, o IPCC não é apenas mais um relatório. É O relatório.

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